
“Luto na Comunidade Escolar: Conhecer e intervir”
Porque é que decidimos intervir na comunidade escolar?
Apesar da inevitabilidade da perda, na cultura ocidental prevalece uma atitude geral de proteção e evitamento em torno destes temas, sobretudo em relação aos mais novos. Tal atitude contribui, paradoxalmente, para uma menor preparação e mais dificuldades de adaptação a situações de transição e crise, desta e das futuras gerações.
É, por isso, urgente desmistificar e contribuir para a consciencialização e capacidade de resposta às necessidades específicas das pessoas em luto, em especial, dos mais vulneráveis, como são as crianças e adolescentes, tendo em conta que eles também pensam, sentem e precisam de medidas de apoio específicas. Educadores informados, regulados e confiantes conseguem transmitir informações seguras aos mais novos, bem como acolher e gerir mais facilmente comportamentos e perguntas relacionados com esta problemática.
Experiências de perda na infância ou adolescência estão associadas a sofrimento emocional e perturbações psiquiátricas, bem como a consequências negativas em termos de desenvolvimento e funcionamento global (Revet et al., 2020). Aproximadamente 20% das crianças enlutadas exibem sintomas emocionais e comportamentais clinicamente significativos (Dowdney, 2000).
Os sentimentos e emoções vivenciados pela perda podem ser intensos e silenciosos, resultando frequentemente em sintomas depressivos, comportamentos destrutivos, uso de drogas e álcool, automutilação e perturbações do comportamento alimentar (Walker & Shaffer, 2007). Um estudo realizado na Inglaterra (Worden, 1996) refere que, ao fim de um ano sem intervenção, cerca de 35% das crianças e jovens apresentavam sintomatologia significativa; ao fim de dois anos sem intervenção, esse número passara para 75%. A intervenção deve, por isso, ser precoce e com longos períodos de follow-up.
A escola, em toda a sua abrangência, é simultaneamente o lugar seguro (e de normalização) de muitas crianças e jovens, bem como o contexto onde todas estas manifestações se refletem, seja através de comportamentos difíceis de gerir, queixas de saúde ou alterações sociofamiliares que conduzem ao abandono escolar, dificuldades de aprendizagem ou outras. A escola pode e deve desempenhar um papel fundamental no suporte emocional aos alunos em luto, sabendo-se que a forma como a escola reage também influencia esse luto (Holland, 2003, 2008).
Deste modo, é essencial que toda a comunidade escolar possa ser ativa na prevenção de percursos de risco e na criação de novas e diferentes respostas de apoio no luto. Reconhecendo que a comunicação sobre a morte e o luto pode ser desafiante para professores (Levkovich & Elyoseph, 2021), importa desenvolver programas de intervenção que promovam maior compreensão e capacidade de resposta perante as necessidades das crianças e adolescentes em luto.
Que projectos temos criado?
Tendo em conta as preocupações com o luto das crianças e adolescentes, e com a necessidade de potenciar recursos na comunidade escolar, começámos por implementar um projecto piloto em parceria com o Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro (Sacavém).
Este projecto desenvolveu-se no ano lectivo de 2023/2024 e contemplava as seguintes áreas de intervenção:
• Formação e supervisão de profissionais de educação do serviço público e privado nos diferentes níveis de intervenção no luto;
• Atividade assistencial nas modalidades de apoio psicológico individual, familiar ou em grupo às famílias em luto, sendo este apoio extensível a prestadores de cuidados de saúde e de educação, aos elementos de forças de segurança, bombeiros e demais profissionais que lidam diretamente com o luto;
• Dinamização de respostas de educação e sensibilização para a perda na comunidade.
Em Dezembro de 2024, a InLuto ganhou um financiamento do BPI Fundação LaCaixa e, partindo da experiência do projeto anterior, dinamizaremos respostas de formação e intervenção em contexto escolar em escolas da Junta de Freguesia de São Vicente (Lisboa). Este projecto contará com o uso da Arte como mediador da intervenção em grupo e com a forte colaboração da comunidade. Poderá acompanhar no nosso site a jornada deste projecto!
O que é o Luto e como se manifesta?
O luto é uma resposta natural e adaptativa a uma perda significativa, geralmente associada – mas não restrita –, à morte de uma pessoa próxima. Pode haver manifestações de luto na sequência de outras perdas importantes, como a perda gestacional, incapacidades físicas ou mentais, separação ou divórcio, morte de um animal de estimação, perda de objetos de valor afetivo, afastamento de papéis ou de cargos sociais ou por dissolução de projetos de vida.
Este processo é simultaneamente universal e único, ou seja, embora todos enfrentemos perdas ao longo da vida, cada indivíduo vive o luto de forma distinta. Essa experiência está ligada às características únicas de cada pessoa, às circunstâncias em que ocorre a perda e, sobretudo, à intensidade da relação com a pessoa perdida (ou outro objeto de perda).
O luto é uma das experiências de vida mais dolorosas e transformadoras, afetando a pessoa no seu todo. Apesar das diferenças individuais, existem algumas manifestações que são relativamente comuns no luto:
- Manifestações físicas – ex., aperto no peito, nó na garganta, dores musculares, fadiga física
- Manifestações emocionais – ex., tristeza, desamparo, medo, ansiedade, culpa, revolta
- Manifestações cognitivas – ex., incredulidade, confusão, perceção de irrealidade, dificuldades de atenção e memória, pensamentos ou sonhos recorrentes relacionados com a perda
- Manifestações comportamentais – ex., desorganização dos hábitos, lentificação ou agitação, isolamento social
- Manifestações espirituais – ex., perda do sentido de vida, sentimento de incompletude e quebra de convicções religiosas.
O luto decorre por fases?
A noção de que o luto decorre de forma sequencial tem origem em modelos teóricos, como o de Kübler-Ross, que descreveu fases como negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Apesar de a autora admitir a possibilidade de avanços e recuos entre as fases, generalizou-se a ideia de que todas as pessoas passariam por todas elas, nessa ordem, para concluir o luto. Contudo, a evidências empírica e a experiência clínica indicam que essa visão não corresponde à realidade. Nem todos passam por todas as fases, e a reação à perda varia significativamente de pessoa para pessoa. Além disso, o mesmo indivíduo pode reagir de forma diferente a diferentes perdas, dependendo da relação, das circunstâncias de morte e do momento de vida da pessoa.
O luto por perda de uma pessoa próxima pode durar uma vida inteira?
A maioria das pessoas consegue, com o apoio de recursos pessoais e sociais, adaptar-se gradualmente à realidade da ausência física da pessoa que perdeu. No entanto, os sentimentos de perda podem continuar a ser reativados por recordações, músicas ou lugares associados à pessoa perdida, bem como por ocasiões especiais, como aniversários ou festas familiares.
Embora essas ondas de dor emocional diminuam com o tempo, podem persistir, ainda que de forma menos intensa, ao longo da vida transformando-se em saudade. Isto não significa que a pessoa está eternamente em luto, mas que o luto faz parte de si, da sua história de vida – chamamos a isto “integrar o luto”.
Contudo, quando a relação era muito próxima, a vida não será como antes, exigindo ajustes na forma como a pessoa se percebe a si própria, aos outros e ao mundo. Esta transformação pode ser no sentido do crescimento pessoal. Significa isto que, em resultado do seu esforço para lidar com a perda, a pessoa pode tornar-se, por exemplo, mais capaz de lidar com as adversidades, mais empática na relação com os outros, mais consciente da sua própria vulnerabilidade.
Quando é que o luto se torna patológico?
O termo “luto patológico” já não é usado devido à sua conotação estigmatizante. Contudo, estima-se que entre 10% a 20% das pessoas têm dificuldades em adaptar-se à perda, devido a fatores pessoais, interpessoais ou situacionais. Casos de vulnerabilidade prévia, como historial de depressão ou ansiedade, dependência emocional ou relações conflituosas, aumentam o risco de luto prolongado. Além disso, circunstâncias da morte, como a sua imprevisibilidade ou experiências traumáticas associadas, podem dificultar a aceitação da perda.
Quando procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica?
É essencial procurar ajuda especializada quando os sintomas de luto são intensos e persistentes, incluindo:
- Saudade e anseio persistentes;
- Sentimentos de vazio e dificuldade em investir nas relações ou nas atividades que antes eram prazerosas;
- Anestesia ou embotamento emocional;
- Confusão e sentimento de irrealidade;
- Mágoa, culpa, ressentimento e dificuldade em aceitar a morte;
- Evitar pensar na perda
- incapacidade de se manter funcional nas áreas social, profissional ou doméstica.
Se estes sintomas persistirem por mais de 12 meses, pode tratar-se de uma Perturbação de Luto Prolongado, uma condição clínica distinta de outras perturbações, como depressão ou ansiedade, mas que frequentemente coexiste com elas.
Tendo em conta o sofrimento e os problemas de saúde física e mental associados à Perturbação de Luto Prolongado, é necessário recorrer a ajuda especializada de profissionais de saúde mental.
A terapia de luto, realizada geralmente por psicólogos especializados na área, ajuda a compreender e a expressar emoções associadas à perda, facilitando a sua elaboração, com consequente alívio dos sintomas. Possibilita também o desenvolvimento de recursos para lidar com a dor emocional e favorece o restabelecimento de relações e hábitos de vida saudáveis. Quando, associados aos sintomas de luto, surgem sintomas de depressão, ansiedade ou outros tipos de problemas de saúde mental, é necessário o tratamento farmacológico, prescrito pela psiquiatria.
O apoio no luto é suficiente?
Os recursos na área da saúde mental são escassos. Embora os cuidados paliativos tenham investido no suporte ao luto, o tempo dedicado a estas intervenções é insuficiente. Em 2019, foi criado o Modelo de Intervenção Diferenciada no Luto Prolongado, com consultas especializadas em Lisboa, Porto, Beja e Faro. Contudo, essas consultas não são amplamente conhecidas, e a sua acessibilidade é limitada. Além disso, falta sensibilização para o impacto do luto, o que leva muitas pessoas a não procurar ajuda.
Como melhorar o apoio às pessoas enlutadas?
É fundamental aumentar a sensibilização sobre o luto na comunidade. A perda, apesar de natural, continua a ser um tema evitado, especialmente em sociedades ocidentais, onde prevalece uma atitude de evitamento em relação à vulnerabilidade e à morte.
No entanto, não é por falarmos na morte que ela se se torna mais assustadora – grande parte do sofrimento associado à perda e ao luto tem a ver com o isolamento e a desvalorização da dor. Paradoxalmente, quando a negamos e reprimimos, ela tende a aumentar ou a manifestar-se de outras formas – geralmente através de somatizações, fobias ou comportamentos de abuso. Se, pelo contrário, formos capazes de estar em contacto e empatizar com a dor do outro, vamos acolher melhor quem sofre.
A formação de profissionais de saúde, educadores e outros intervenientes que lidam com situações de perda é essencial para garantir uma abordagem empática e evitar atitudes que invalidem o sofrimento. Por fim, é necessário investir em estruturas de apoio locais e especializadas, bem como em investigação que sustente práticas baseadas em evidência.
Os grupos de luto são úteis?
Grupos de luto podem ser muito benéficos, proporcionando um espaço de partilha e identificação com outros que passaram por experiências semelhantes. Além disso, podem promover esperança e ajudar na ressignificação da perda. Contudo, nem todos têm indicação para participar em grupos, especialmente em fases iniciais de luto, sendo necessário um moderador qualificado para assegurar um ambiente seguro.
Porque é que, apesar de a morte ser natural e inevitável, continuamos a sofrer tanto com ela?
A morte simboliza a separação de pessoas que são fundamentais na nossa vida. Como seres humanos, desde o nascimento, dependemos dos outros, não apenas para sobreviver fisicamente, mas sobretudo para nos sentirmos seguros. Precisamos de uma figura constante que nos ofereça estabilidade e conforto emocional – aquilo que designamos por figuras de vinculação. Esses laços significativos são o que nos conecta à vida.
Quando um desses vínculos se quebra, a nossa sensação de segurança é abalada, tal como a nossa ligação à própria existência. Se essa pessoa nos complementa, preenchendo uma parte essencial do nosso ser, perdê-la é como perder uma parte de nós mesmos. E é por isso que a dor pode ser tão intensa, chegando a manifestar-se até fisicamente.
Embora a morte seja algo natural e inevitável, representa uma ameaça à nossa própria existência. Ela desafia a nossa perceção de permanência, previsibilidade e controlo. Confronta-nos com a nossa pequenez e vulnerabilidade, suscitando perguntas e inquietações – o que acontece depois?
No entanto, é justamente por ser tão desafiador lidar com a finitude e a separação que esse processo pode ter um profundo impacto transformador. Ele pode tornar-nos mais empáticos, conscientes das nossas limitações, e capazes de valorizar ainda mais a vida e o amor que damos e recebemos.